conversa de fagotista

- aloysio fagerlande -

 

Aloysio Fagerlande mora no Rio de Janeiro, onde é professor de fagote da Escola de Música da UFRJ.

É integrante do Quinteto Villa-Lobos.

Sua tese de doutorado em música na UniRio tem como tema o "fagote na música de câmara de Villa-Lobos."

entrevista realizada em março de 2008

 

portal do fagote - como chegou ao fagote? quem foram seus professores?

Aloysio - Comecei tarde no fagote. No final da década de 70 tocava flauta-doce e participava entusiasticamente daquele movimento de música antiga no Rio de Janeiro, já realizando alguns trabalhos como profissional: era integrante do Conjunto de Musica Antiga da Rádio MEC. A Rádio MEC tinha então em seu quadro permanente a Orquestra Sinfônica Nacional (hoje na UFF), a Orquestra de Câmara, o Quinteto de Sopros, o Coral, além do Conjunto de Musica Antiga.     
Freqüentava regularmente a loja de partituras de Oscar Arany, velho amigo da família, para conversarmos, sobretudo sobre música. “Seu Oscar”, como carinhosamente o chamava, contava as histórias do meio musical, e já vinha há algum tempo me dizendo que deveria tocar um instrumento de orquestra, e que me via tocando fagote! Até que uma tarde chegando lá, categoricamente me avisou: “Vou ligar para o grande mestre do fagote para você começar!”. Rapidamente pegou o telefone, discou um numero e começou a falar em francês; depois de alguns minutos me disse: “O grande Noel Devos está te esperando na casa dele dentro de 30 minutos!” Fui correndo para a Rua Silveira Martins, e duas horas depois saía de lá com um fagote Buffet-Crampon emprestado, uma série de recomendações de como montar e desmontar o instrumento, de como estudar, além de aulas particulares agendadas para todas as sextas-feiras.
Acho que isto já pode dar uma pequena dimensão da grande generosidade humana, acima de tudo, deste grande Mestre. Tudo me impressionou bastante, o modo como fui recebido, e sobretudo desde a primeira aula o amor que Noel Devos dedica à música. Sim, falo da música antes do fagote, pois este é apenas um instrumento como o próprio nome diz. Aprendi a importância de se fazer música, não apenas tocar um instrumento. Buffet, Heckel, ou mesmo um Guarany (sim, existiam uns fagotes desta marca supostamente fabricados aqui) todos ficavam iguais e diminutos perante a grandiosidade musical de Devos.
Mas acima de tudo aprendi a amar a música brasileira estudando com Devos. Não me lembro de ter visto outro músico aqui no Brasil com tamanho comprometimento com nossa música de concerto.
Me lembro quando Devos chegou com uns manuscritos de umas peças que Francisco Mignone tinha acabado de compor, fazendo questão de tocar para me mostrar como o fagote deveria ser utilizado: eram as primeiras das 16 Valsas para fagote solo! E dizendo: “Olha só como o fagote não é o palhaço da orquestra!”
Mais tarde, de 1986 a 1987, estudei com Gilbert Audin no Conservatoire de Rueil-Malmaison, na França, ainda tocando o fagote Buffet Crampon; foi muito interessante poder estar no meio de uma classe de 16 alunos, todos mais jovens que eu e com uma técnica alucinante – o Concerto de Jolivet era brincadeira para todos! Já em 1992, com um fagote Fox, fiz um estágio com Gerald Corey em Ottawa, Canadá, onde ele era 1º fagote do National Arts Centre Orchestra, além de professor do Conservatoire de Montreal. Corey foi muito importante em minha passagem do sistema francês para o alemão, pois, depois de muito tempo tocando um Heckel, ele foi ter aulas do Buffet com Maurice Allard em Paris. Conhecia bem os dois sistemas, e me ajudou bastante nesta transição, além de ser um expert em montagem e raspagem de palhetas.
Também não posso deixar de citar Benjamim Coelho, que me ensinou os primeiros “macetes” do sistema alemão quando, em 1989, optei por este sistema.
A música de câmara é o melhor caminho para a formação de um instrumentista. Foi muito importante para mim o quarteto de fagotes que Devos ensaiava com seus alunos (quando comecei, os outros integrantes eram Antonio Bruno e Ricardo Rapoport, além do próprio Devos). Aí ele trabalhava cada detalhe, cada tipo de articulação, as respirações, enfim, podíamos vivenciar e aplicar o que estávamos aprendendo, além de ouvi-lo tocar. Sem contar os grandes momentos como os ensaios na casa de Francisco Mignone, quando este estava escrevendo seus quartetos para fagotes e íamos lá tocar para ele.
E os memoráveis cursos de interpretação da obra de Villa-Lobos! Foi o meu primeiro contato com nosso genial compositor, e Devos sabia como mostrar o verdadeiro lado brasileiro (e também francês...) dos Choros, das Bachianas, e de toda a obra de câmara para sopros, sempre valorizando cada anacruse, cada acento que deveria ser tocado de modo diferente.

 

portal do fagote - onde concentra atualmente suas atividades?
Aloysio - Atualmente sou professor de fagote na Escola de Música da UFRJ, onde entrei por concurso após a aposentadoria de Devos em 1997, além de integrante do Quinteto Villa-Lobos. Também já integrei a OSB durante 12 anos; a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do RJ por cerca de 10 anos; a Orquestra Sinfônica Nacional da UFF por 1 ano; a Orquestra Pró-música (atual Petrobras Sinfônica) por uns 2 anos; além da OSESP na época do Eleazar de Carvalho por 2 meses!
Esta, aliás, foi uma história muito interessante: foi em 1981, tinha 2 anos de estudo no fagote, e estava me preparando para fazer o Concurso Jovens Solistas de Piracicaba, SP. Umas duas  semanas antes, me liga um amigo de São Paulo (atualmente maestro!!! sim, estes já foram humanos algum dia...) me avisando que a OSESP estava abrindo concurso para vários instrumentos, inclusive fagote. Ora, como no caminho para Piracicaba teria que passar por São Paulo, e o programa era praticamente o mesmo, achei que seria um bom teste para o concurso dias depois, além de vivenciar uma prova de orquestra. Fui então sem a menor expectativa.
Mal sabia eu que eles estavam numa grande enrascada! Até então – isto foi em 1981-  as duas grandes orquestras de São Paulo (Osesp e Teatro Municipal) ensaiavam em horários diferentes, manhã e tarde. Mas bastou o Karabtchevsky assumir o Teatro Municipal para que as antigas desavenças com o Eleazar de Carvalho viessem à tona. Resultado: as orquestras passaram a trabalhar no mesmo horário, e os vários músicos de sopro que tocavam nas duas tiveram que optar. E a OSESP precisava com urgência de um 2º fagote, pois iria partir em uma turnê de quase 30 dias por todo o Brasil e não conseguia preencher a vaga! E a viagem era dentro de 10 dias!
E eu não sabia de nada.... fui fazer a prova, toquei o Mozart, dois estudos do Milde, algumas leituras à primeira vista, e no final o Eleazar pediu duas escalas terminando no grave em pp com o seguinte comentário: “2º fagote tem é que saber tocar piano no grave!!!” . Após esta pérola, virou para a banca e perguntou em altos brados se eu estava aprovado. Saí dali para o concurso de Piracicaba tendo que retornar 5 dias depois para o início dos ensaios da turnê.
Bem, fiz o concurso em Piracicaba, ganhei o 1º lugar, e conheci dois amigos, os irmãos Paulo e Luis Carlos Justi. Só tive tempo de voltar para o Rio, pegar minhas coisas, e retornar a São Paulo para o início de uma aventura. Aventura ou loucura! Imaginem um fagotista com dois anos de instrumento, sem jamais ter pisado em um palco com orquestra, chegar para um ensaio da 6ª de Tschaikowsky, 3ª de Beethoven, várias aberturas, concertos de piano, de violino, ou seja, repertório de 3 programas para a turnê. Isto tudo em 5 dias, em seguida 25 concertos por todo o Brasil. Tenho que agradecer ao Alain Lacour, na época 1º fagote da orquestra, que me ajudou bastante.
Voltando a São Paulo após 30 dias de estudo nos quartos de hotel e concertos à noite, tive total consciência (e possibilidade, pois morava com meus pais) para pedir minha demissão e voltar aos estudos com Devos no Rio.
Acho importante mencionar este episódio para ilustrar uma situação que já foi bastante comum: a profissionalização precoce. Agora já existem mais alunos de fagote, mais gente estudando e tocando bem, mas em 1981 quase não havia candidatos para os concursos, e a solução, no caso dos 1ºs fagotes, era importar, ou aceitar fagotistas sem o preparo adequado para as outras funções.
Então, voltando ao Rio, refiz o que deveria ser um percurso normal de todo jovem músico: Orquestra Jovem, concurso para estagiário da OSB, concurso para efetivo da OSB, saída da OSB, admissão na Orquestra do Teatro Municipal, até minha saída desta em 2005.

 

portal do fagote - como vê a formação de um fagotista? de quais métodos se serve?
Aloysio - Acho que aqui no Brasil, como em todos os países econômica e socialmente semelhantes, vivemos uma grande contradição: o fagote não é um instrumento economicamente viável para a imensa maioria dos estudantes e até mesmo para os profissionais. Se formos observar os salários médios das orquestras brasileiras, a compra de um bom fagote será sempre um grande sacrifício, e não me lembro de nenhuma categoria profissional que tenha que investir tanto em seu instrumento de trabalho. Isto para não falar do aluno que pretenda iniciar no instrumento. Só mesmo através de escolas, bandas de música, orquestras e outros organismos que possam emprestar um fagote para os seus estudos. Como pode alguém no Brasil gastar pelo menos R$5.000,00 (valor totalmente por baixo) para ver se gosta do instrumento? Flautas, clarinetas, trompetes, trompas, todos estes você pode encontrar com R$500,00 para começar! Mas mesmo assim vamos lutando, e o melhor fagote para um aluno é sempre aquele que está em suas mãos! Ele deverá procurar fazer o melhor possível com o instrumento que tem no momento.
Quanto aos métodos utilizados, nenhuma grande novidade: muitas e muitas escalas, Weissenborn, Milde, Bozza e trechos de orquestra; além dos vários métodos existentes, gosto de usar as partes originais; muitas vezes a dificuldade aumenta quando se vem tocando a obra desde seu início, e não apenas o trecho difícil. Aconselho aos alunos a repartirem o seu tempo na seguinte proporção: 1/3 de escalas, 1/3 de métodos e 1/3 de obras do repertório. No programa da EM-UFRJ, onde leciono, mantenho a sugestão de Devos: em cada semestre, todos os alunos devem preparar uma peça barroca ou clássica, uma moderna e uma brasileira.

 

portal do fagote - que conselhos dá a quem resolveu escolher o fagote como profissão?
Aloysio - Muito estudo, muita música de câmara, e percepção aguçada: vocês já observaram como o fagote é extremamente maleável em termos de sonoridade e afinação? Aprender sempre com o colega fagotista do lado – quantas vezes a gente não observa uma solução interessante para nossos próprios problemas!
Aprender a preparar sempre sua palheta; até agora não tinha falado nela... Procuro sempre dedicar uma aula mensal à montagem e raspagem de palhetas – todos os meus alunos tem que tocar com as suas próprias; apenas para os iniciantes dou uma certa “colher de chá”, pois se logo de cara entram neste fascinante e ao mesmo tempo perigoso mundo podem desanimar muito cedo...

 

portal do fagote - o que é melhor: ser intérprete ou professor?
Aloysio - Percebo as duas funções como interligadas: são os dois lados da mesma moeda. Acredito que em música o método empírico é totalmente eficaz, sendo o princípio da repetição uma das características principais de nossa música ocidental de concerto. Não é assim que estudamos? É claro que sempre com consciência e concentração, mas partimos sempre do principio da experimentação e erro para posterior correção, através da repetição. É por isso que em nossa atividade ajuda muito ter passado pelas situações para entendê-las e transmiti-las melhor.

 

portal do fagote - Vamos agora ao seu lado intérprete: desde quando atua no Quinteto Villa-Lobos (QVL)?
Aloysio - Em 1997 recebi um convite para ingressar no grupo, que estava com a gravação do CD “Quinteto em Forma de Choros” agendada. Me lembro que tinha acabado de voltar do Festival de Musica de Câmara de Buenos Aires, Argentina, onde fui tocar a Bachianas Brasileiras n.6 e dar uma oficina sobre ela, quando o Paulo Sérgio Santos, Luis Carlos Justi e Philip Doyle me chamaram, juntamente com o flautista Toninho Carrasqueira, para esta gravação que ocorreria um mês depois – foram semanas de ensaios e mais ensaios. E estamos nesta formação há quase 11 anos!

 

portal do fagote - o QVL faz um fantástico trabalho de divulgação da música brasileira; como o público recebe essa música?
Aloysio - Tenho orgulho de mostrar que nestes quase 11 anos o QVL produziu mais que muitas orquestras e grupos ligados ao estado ou a empresas particulares: 7 CDs, sendo 2 deles duplos! O grupo completou 45 anos de atividades ininterruptas em 2007 sem jamais ter tido um patrocinador permanente. É claro que a maior parte dos projetos tem patrocínio, pois sempre corremos atrás... Prefeitura da cidade do Rio de janeiro (1999/2000), Petrobrás (CDs gravados em 2005, 2006 e 2007), Funarte (Bienais, Proj Circulação de Música de Concerto, Proj. Concertos didáticos), SESC-Nacional, SESC-RJ, Oi-Futuro (2008), foram algumas das empresas e/ou instituições que patrocinaram projetos do QVL nestes últimos anos, em sua grande maioria através de editais de seleção pública.
Procurando retomar a fidelidade ao projeto original de Airton Barbosa, o QVL dedica-se sobretudo à música brasileira, seja de concerto ou popular – nós possuímos uma música riquíssima, pouco divulgada aqui mesmo no Brasil. Temos também este papel, de mostrar toda esta riqueza muitas vezes escondida, meio que avergonhada, sentindo-se inferior à produção européia... Parafraseando Nelson Rodrigues, temos que ajudar a espantar o “complexo de vira-lata” que muitas vezes ataca as programações de nossas orquestras, escolas de música, festivais de música, etc.
Outra característica fundamental do grupo é a alegria no palco. Isto para o público tem uma importância enorme! Me lembro imediatamente de alguns grupos/orquestras dos quais já participei, onde se tem a impressão de um velório, e que os músicos estão lá obrigados, completamente desanimados... Imaginem-se na platéia vendo uma cena destas!!! Eu jamais iria a um teatro para assistir quem não dá importância ou seriedade ao que faz.

 

portal do fagote - como concilia sua agenda de ensaios, gravações, concertos, aulas, recitais?
Aloysio - Como há algum tempo não toco regularmente em orquestra, ficou tudo mais fácil neste sentido. Mas sempre existe a correria, agenda apertada, enfim, uma das alegrias da vida de músico é a diversidade e conseqüente falta de monotonia.

 

portal do fagote - as gravações do QVL são feitas em estúdio ou são documentos de concertos ao vivo? como é esse processo de gravação?
Aloysio - A maioria de nossas gravações foi realizada no Estúdio Sinfônico da Rádio MEC, no Rio de Janeiro. Estamos com um projeto de lançar um CD com um concerto gravado ao vivo na Alemanha que ficou muito bom, mas cujos direitos autorais estão custando muito caro... Ultimamente temos gravado com apenas 4 canais, dois pedestais com dois microfones em estéreo L-R, de modo a aproveitar a acústica natural do Estúdio . A plataforma operacional de gravação é o Protools.
O CD duplo “A obra de Câmara de Heitor Villa-Lobos” (2005) foi gravado ao longo de 2 meses, pois eram várias peças com formações diferentes, desde duos até septetos, bastante difíceis tecnicamente: Duo para oboé e fagote, Trio de palhetas, Fantasia Concertante, Bachianas 6, Quatuor, Quinteto em Forma de Choros, Choros n.7. Só pauleira!
Já este último, “Quintetos de Sopro Brasileiros” (2007), também duplo, foi gravado em 15 sessões, com 13 obras bem diferentes e duas que ficaram de fora porque não havia espaço nos 2 CDs. Também foi puxado. Ensaiávamos os últimos detalhes toda manhã de 10h ao meio-dia, e gravávamos de 19h à meia-noite, durante 3 semanas, sendo que nos dois finais de semana intermediários fomos tocar em Festivais com programas totalmente diferentes! Mas aconteceu em janeiro, onde o calendário ainda é mais tranquilo...

 

ver detalhes deste CD: CD em foco - Quintetos de sopro brasileiros

 

portal do fagote - dentre os muitos CDs do QVL tem afeição por algum em particular? ou por alguma obra em especial?
Aloysio - As idéias para o repertório de um CD são sempre discutidas pelos cinco integrantes no QVL. Assim cada CD gravado é quase como um filho, todos são especiais... Mas a “Obra de Câmara de Villa-Lobos” reveste-se de um carinho diferente: pelo que sei, é a primeira gravação integral deste repertório realizada por músicos brasileiros. É claro que todas as obras já foram gravadas, existem registros fantásticos dos Festivais Villa-Lobos com gravações ao vivo de José Botelho, Noel Devos, Paolo Nardi, só para falar nos grandes mestres-pioneiros, mas sempre isoladas e nunca em conjunto.

portal do fagote - como se dá o lançamento de um novo CD?
Aloysio - Isto não tem regra – infelizmente ainda não conseguimos ter uma agenda definida com antecedência, de modo que às vezes tudo fica um pouco corrido. Os convites, projetos, festivais, quase sempre são confirmados em cima da hora. Isto sem falar nas agendas individuais, por vezes conflitantes. Para se ter uma idéia, o concerto de lançamento do nosso último CD “Quintetos de Sopro Brasileiros” aconteceu em outubro no Rio de Janeiro, e os CDs só chegaram da fábrica às 15h do dia do concerto!!!

 

portal do fagote - algo a acrescentar?

Aloysio - Não poderia deixar de registrar o trabalho de integração entre fagotistas brasileiros a partir do portal do fagote e do clube dos fagotistas. É algo fantástico, que nos aproxima e possibilita uma maior troca de informações, fundamental no mundo de hoje.

 

portal do fagote - ALOYSIO, MUITO GRATO POR SUA VALIOSA ENTREVISTA...

 

página inicial