conversa de fagotista

ricardo rapoport 

Ricardo Rapoport já não toca mais em nenhuma orquestra fixa, mas participa de várias orquestras européias, sobretudo explorando as músicas barroca e contemporânea. É professor titular de fagote no CNR de Rennes, contando entre seus alunos alguns com fagote sistema francês, alguns com sistema alemão e também crianças com "fagotino". Vários CDs divulgam Ricardo Rapoport como solista e como compositor (trio de palhetas e "Augusto" p/ barítono, clarone, fagote, violoncelo, contrabaixo e percussão). Escreveu um texto sobre a evolução do fagote, que serve de base para o curso de história da música no Conservatório de Paris. Trabalhou junto com COTTET, fabricante de oboés e fagotes barrocos, que desenvolve também um fagote moderno. Acaba de lançar um CD com as sonatas de DARD.

 

entrevista realizada em maio de 2007

 

portal -  quais os caminhos que o levaram ao fagote?

Rapoport -  Na verdade eu comecei a música aos 10 anos tocando violão, na Pró-Arte do Rio. Primeiro popular, como todo mundo, até o dia em que, com mais ou menos um ano de violão, toquei para o meu professor o 3° Prelúdio de Villa Lobos, que tinha tirado de ouvido. Ele me mandou imediatamente para o Léo Soares, que dava aulas de violão clássico. Na Pró-Arte nessa época havia muita atividade e eu comecei acompanhando as flautas doces e tocando música renascentista e barroca, fazendo baixo contínuo com cifras de música popular, etc... também toquei viola da gamba por uns anos. Apesar de participar de diversos grupos e tocar com bastante gente comecei a achar o violão um pouco solitário e comecei a pensar em tocar um instrumento de orquestra. Tinha que ser de sopro, pois gostava dos sons e, por um tempo, hesitei entre clarineta e fagote. Como todo "violonista" adorava os baixos da música nos choros e resolvi começar o fagote, pois ele me dava essa possibilidade. Além do mais, ironicamente de um ponto de vista retrospectivo, estava cheio da música barroca...! e no início de meus estudos de fagote não queria sequer tocar uma sonatinha barroca.
Em 1975 fui ao Festival de Curitiba, com o meu violão, e lá ouvi o Devos tocando o concerto de Mozart (ou Weber) e o Jung tocando Weber (ou Mozart). Me lembro também perfeitamente de uma aula de montagem de palhetas do Jung ao ar livre, da qual participei mesmo sendo violonista. Quando voltei ao Rio resolvi que tinha que ser fagote mesmo. E no sistema francês, porque achava mais bonito (e para certas coisas ainda acho).

 

portal - mas havia uma diferença de preços muito grande entre um violão e um fagote!
Rapoport - Lembro me que meu pai queria que eu tocasse violoncelo e, neste caso, me compraria um. Se eu quisesse tocar fagote que me virasse! e me virei... O Bruno Gianessi me emprestou um instrumento sistema francês, metade belga, metade italiano, de antes da 1ª guerra, com uma fenda enorme na aleta; e comecei a estudar com Devos. Um ano e meio depois compramos um Buffet Crampon.

 

portal -  estudos musicais e primeiras experiências...
Rapoport -  Paralelamente aos instrumentos também estudei solfejo e análise musical com a Ester Scliar na Pró-Arte. Depois, harmonia e contraponto com  Guerra Peixe. Assim, quando comecei o fagote, aos 16 anos, ja sabia ler e, principalmente, entender alguma coisa em música, o que facilitou as coisas. O início foi bem mais rápido. Com dois anos de instrumento toquei o concerto de Mozart com uma orquestra amadora. Depois foram as orquestras jovens, muita música de câmera com os amigos e finalmente a OSB.
Como na hora do vestibular eu sabia que não queria fazer faculdade de música e me interessava por divesas coisas, fui fazer arquitetura, uma das minhas paixões; mas paralelamente continuei com a música. Cheguei a fazer "orquestra" na UFRJ como matéria eletiva, mas foi só no último ano de faculdade que comecei a pensar em tentar ser músico profissional.

 

portal -  de um concurso de música de câmara na UnB para a França?
Rapoport -  Na verdade eu participei de vários concursos no Brasil. Dois da Funarte, Jovens solistas da Orquestra Estadual de São Paulo e Nacional de Brasíla e o 2° Sul América. Eles me deram oportunidades de tocar em vários lugares. Com a OSESP toquei o Concertino de Mignone, com a ONB toquei Mozart e pela Funarte toquei, com a Maria Teresa Madeira, recitais no Acre e em Mato Grosso.
Quando fiz o Concurso Sul América ganhei, entre outros prêmios, uma bolsa para a Manhattan School of Music que eu recusei porque queria vir para Paris. E vim, sem bolsa. Foi bem difícil, mas aos poucos fui me virando. Me lembro de ter chegado num sábado à noite e ter dormido num albergue com o meu fagote e uma mala enorme. No domingo tomei um café e comprei uns croissants que fui comer numa pracinha em baixo da rue Mouffetard. Só tinha eu, com a caixa do fagote na mão e diversos mendigos sonolentos. E eu me perguntando: "o quê que eu tô fazendo aqui?"

 

portal - como se deu a passagem do fagote francês para o sistema alemão?
Rapoport - Quando o Bruno Gianessi (novamente!) resolveu vender o antigo Heckel dele, que tinha o sistema de chaves do grave francês, eu comprei. Mas a princípio não queria trocar. O Aloisio Fagerlande tinha acabado de trocar de sistema e eu sabia que o Devos não ia gostar muito da idéia. Durante as férias, quando estive no Brasil, fui à casa dele para tocarmos juntos e levei os dois. Mostrei o Heckel e ele imediatamente disse: "Foi você que comprou esse instrumento? eu queria te-lo comprado para mim...."
Como eu não ía tocar mesmo larguei o Heckel lá até voltar para Paris; não sei o que ele fez com o instrumento, mas nunca tivemos problemas. Quando resolvi realmente trocar eu ja tocava fagote barroco há bastante tempo e foi algo perfeitamente natural.

 

portal -  fale da situação atual entre estes dois sistemas... por vezes há um certo preconceito!
Rapoport - Como ja disse, eu adoro o fagote francês. O fagote alemão é mais maleável, o francês mais físico, pricipalmente para os lábios. Paradoxalmente o resultado sonoro, na minha opinião, é inverso. Diversas peças soam melhor e são mais fáceis do que no alemão.
No ano passado tive que re-estudar o Concertino de Mignone e tocá-lo pela primeira vez com fagote alemão, obra que eu conheço de cor e tinha tocado já inúmeras vezes no fagote francês. Garanto que é mais idiomático, mais apropriado no francês. E mais bonito também, mas isso é gosto, que não se discute. Na época em que eu comecei o barroco também ainda existia preconceito.
Para mim, um músico pode, e deve, fazer música mesmo tocando uma simples caixa de fósforos. Com um objeto tão aperfeiçoado como um fagote então...  No mais são considerações de oportunidades profissionais, de eficiência ou de gosto. Todo o resto é má fé. Tanto de um lado como do outro.
Certos colegas importantes aqui na França, que recentemente migraram para o fagote alemão e que durante anos abusaram dos ataques pessoais e profissionais contra colegas que já haviam feito o mesmo, resolveram, de um dia para o outro, que o fagote francês não funciona e é horrível. Um dia, em minha casa, quando vieram "aprender" a fazer palhetas, coloquei de propósito um cd que tinha acabado de receber, com a gravação da sonata de Saint Saëns pelo Allard (que foi nosso professor) e a pergunta foi: "você gosta mesmo? eu acho insuportável!" Eles também decidiram que todos seus alunos tinham que trocar de sistema, o que eu, e vários outros, aliás, nunca fizemos. A escolha deve ser pessoal.
O único problema é que cada vez existe menos trabalho com o fagote francês e não me parece honesto para com os alunos esconder esta realidade, como ainda fazem alguns por aqui. Pedagogicamente isto sempre me preocupou e me lembro de uma conversa minha e do Fagerlande com o Michel Denize sobre esse assunto, já há mais de 20 anos, quando nem eu nem ele pensávamos ainda em trocar.

 

portal - além de tocar os dois sistemas, Você ainda é um especialista em fagote barroco; como transita entre estes diversos instrumentos? 
Rapoport - Eu não gosto do termo especialista: a vida é muito curta para isso e existe tanta coisa interessante. Além do mais o termo supõe certezas e eu acho que as dúvidas e a tentantiva de respostas são fundamentais para se ir para frente.
Quanto a passar de um instrumento a outro, isso só depende de saber se organisar, estudar bastante e ter sangue frio na hora de tocar. No início a gente mistura um pouco os dedos, mas logo se habitua e percebemos que os problemas são complementares, o que permite aprender coisas úteis a todos os instrumentos com cada um deles. Temos também que saber como fazer palhetas para os diversos instrumentos, porque são completamente diferentes, e conhecer os diferentes estilos musicais. Além do mais, o fagote barroco, é dentre todos o que me cansa mais os lábios, porque devemos corrigir cada nota mesmo se a pressão é muito menor do que nos modernos.

 

portal - quais suas atividades musicais/profissionais no momento?
Rapoport - Eu sou professor de fagote(s) e música de câmera em Rennes. Trabalho como fagotista em diversas orquestras barrocas, grupos de música de câmera barroca e moderna, toco um pouco menos de música contemporânea hoje em dia (porque não dá para fazer tudo, o que é uma pena); toco em média pelo menos um concerto de fagote com orquestra por ano e às vezes um recital (coisa que em geral não gosto de fazer). Orquestra sinfônica permanente eu nunca mais quiz fazer desde que saí do Brasil e da OSB.

 

portal - Você desenvolveu uma atividade com o Sr. COTTET, um fabricante de instrumentos barrocos; em que sentido se deu este intercâmbio?
Rapoport - o Olivier Cottet é um fabricante de fagotes e oboés barrocos muito importante e reconhecido. Há mais de 15 anos toco instrumentos feitos por ele. Neste meio tempo tive a oportunidade de ajudá-lo a desenvolver e melhorar alguns de seus instrumentos e com esta colaboração aprendi muita coisa sobre acústica, regulagens e fabricação de fagotes. Ele se lançou na fabricação de fagotes modernos, sistema alemão, mas ainda não está contente com o resultado. Na minha opinião funcionam bastante bem.

 

portal - como é para um brasileiro dar aulas na França?
Rapoport - Não é diferente de um francês que dá aulas aqui e só é diferente de alguém que dá aulas aí porque o sistema de ensino é muito diferente.

 

portal - quais as perspectivas profissionais para um estudante de fagote na França?
Rapoport - As coisas nao são fáceis. O mercado de trabalho é mais restrito do que em outros países como a Alemanha, por exemplo. E tem muita gente com um nivel em geral bastante alto.

 

portal - regularmente Você participa dos festivais de Juiz de Fora; no ano passado o Festival saiu com um primoroso CD interpretando também sinfonias de Mozart; Você participou deste projeto?
Rapoport - Sim, e na realidade já gravamos 8 CDs em Juiz de Fora, sempre com instrumentos "barrocos".  Este último, e o próximo, com intrumentos "clássicos", que são diferentes e não têm o mesmo diapasão.
Participo da orquestra do festival desde a criação há uns 10 anos e tenho muito orgulho do trabalho que fazemos lá. O tempo é sempre muito curto e não temos as mesmas condições de trabalho que na Europa, mas o resultado tem alguma coisa um pouco indefinível, que ja esqueceram por aqui.

 

portal - um conselho e/ou recomendação a quem estuda fagote?
Rapoport - Eu sempre digo aos meus alunos que o que me interessa é formar fagotistas inteligentes e não bons fagotistas, porque se eles forem inteligentes, ser bons só dependerá de vontade e de trabalho. O contrário acontece mais dificilmente.
Estude mas não esqueça que o fagote (e por extensão: palhetas, regulagens, etc...) é só um meio. Entender a Música em geral é tão ou mais importante. A técnica só pode vir do entendimento do que queremos dizer e o trabalho dos dois tem que ser feito em paralelo.

 

portal - Você acaba de gravar um CD; que obras estão nele gravadas?
Rapoport - no CD gravei as seis sonatas de DARD com um fagote barroco, com afinação A=415. Essas sonatas são relativamente conhecidas por uma gravação já meio antiga da 6ª sonata, feita por Jesse Read com fagote moderno e pela edição da 5ª sonata na NOVA MUSIC, além das fotocópias da edição original que circulam por aí. Elas são consideradas impossíveis por vários fagotistas, pelo menos no fagote da época. Sobem ao ré 4 e são extremamente virtuosísticas, tanto nos movimentos lentos quanto nos rápidos. Como não se sabe (não se sabia!) nada sobre Dard, muito menos a data exata das sonatas, fiz uma longa pesquisa em arquivos e bibliotecas para encontrar informações.Elas estão no texto que acompanha o CD.... leiam ! Só vou adiantar que Dard foi 1° fagote da Ópera da Paris, que elas foram publicadas em janeiro de 1759 e que ele, mesmo tendo "exagerado" um pouquinho, sabia o que fazia!

 

portal - Para quando é a previsão do lançamento? teremos oportunidade de adquirir o CD também no Brasil?
Rapoport - o CD sai dia 15 de maio no BeNeLux, 20 de maio na Alemanha, 15 de junho no restante da Europa; nos EUA e Japão ainda não sei. Infelizmente, por enquanto o selo Ramée (que é alemão) não é  distribuído na América Latina. A partir destas datas, para comprar o CD no Brasil, tem que ser pela internet, em qualquer loja, ou diretamente no site do selo: http://ramee.org . O catálogo deles é pequeno mas excelente. Os discos são muito bem gravados e bonitos.

 

portal - o portal do fagote agradece a gentileza desta entrevista, deseja sucessos em suas atividades, cumprimenta e parabeniza pela excelência da interpretação em seu novo CD...                  

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