O PODER CRIATIVO DA MÚSICA

 

texto extraido de: Estética musical. O poder formativo da música

Rivera Editores, Valência, 2005 www.editores.riveramusica.com

 

Alfonso López Quintás


O bom intérprete não repete a obra; volta a criá-la a partir de sua peculiar sensibilidade. Ao princípio, lê a partitura; estuda nota a nota a digitação devida; analisa as diversas frases e as ensaia. Enquanto realiza estes trabalhos de olho na obra, sua interpretação é carente de soltura e liberdade interna. À força de ensaios, as formas se perfilam através das notas, tomam corpo, articulam-se umas com as outras. Ao configurar a obra deste modo, o intérprete ganha uma crescente liberdade. Já não está preso à partitura. Esta vai passando a um segundo plano à medida que as formas se fazem presentes. O intérprete continua pondo em jogo todos seus meios técnicos: conhecimentos musicais, agilidade mental, força muscular..., mas todos eles se voltam transparentes ao converter-se em vias abertas à expressão musical.

Neste momento, estamos tentados a dizer que o intérprete "domina" a obra enquanto "se deixa dominar" por ela. Mas esta linguagem é inadequada a um processo criativo como é o da interpretação musical. O justo é dizer que o intérprete configura a obra enquanto se deixa configurar por ela. É uma experiência reversível, de dupla direção. O intérprete se encontra em seu elemento, em seu lar espiritual, quando converte a obra em uma voz interior, deixa-se levar por seu ritmo e preencher de suas harmonias. Ao ser-lhe totalmente fiel, sente-se plenamente livre, com liberdade criativa. Ao deslizar-se pelas avenidas da obra, sente que a obra se identifica prodigiosamente com ele, é re-criada por ele e lhe é, contudo, transcendente. Por isso admite interpretações diversas, que se contrastam e complementam.

A capacidade formativa da experiência musical mostra-nos que, ao atuar criativamente na vida, podemos assumir normas que nos vêm de fora sem perder nossa verdadeira liberdade. Ao sermos fiéis à partitura -que limita nossa atividade-, e criar novamente uma obra, diminuímos um tanto nossa liberdade de manobra -nossa capacidade de atuar arbitrariamente-, mas nos sentimos mais livres que nunca quanto à liberdade criativa, que é a autêntica liberdade humana. Uma vez configurada perfeitamente a obra, o sensível e os meios técnicos cobram todo seu valor, mas não se fazem autônomos; fazem-se transparentes para deixar que a obra se manifeste em todo seu esplendor.

 

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