obras de compositores brasileiros

para fagote solo

dissertação de mestrado, UNI-RIO, 1999

ARIANE PETRI

 
1.3 Formas de apresentação:

sistema francês - sistema alemão

Hoje em dia são usados dois sistemas diferentes de fagote, o francês e o alemão, que diferem umdo outro por sua construção, sonoridade e maneira de tocar. Das outras madeiras de palheta  também há sempre uma versão francesa (o instrumento ‘Böhm’) e uma alemã, porém as diferenças nunca são tão explícitas como no fagote.

As características do fagote francês, hoje em dia basicamente representado pela marca Buffet- Crampon23, são a sua expressividade, sua leveza e boa resposta no registro dos extremos agudos, seu som - quando comparado com o do fagote alemão - mais nasal, delgado e penetrante, com notas mais difíceis de afinar em cada registro.

O fagote alemão, cujo desenvolvimento foi muito influenciado por C. Almenräder e J. A. Heckel, geralmente é considerado “mais seguro” e “mais fácil de controlar”24, além de seu som se apresentar mais volumoso, redondo e equilibrado ao longo dos vários registros. Por outro lado, como conseqüência, mudança e variação de timbre são menos fáceis de realizar.

No sistema francês, a possível variação de altura das notas é maior, o que facilita oscilação ou produção de quartos-de-tom em peças que exigem tais técnicas. Já a melhor padronização de som e estabilidade de afinação do fagote alemão facilitam o dia-a-dia do músico. Apesar do fagote francês ter mantido uma aparência mais próxima do instrumento do século XVIII, os dois sistemas passaram por inúmeras alterações, tanto para corrigir problemas de afinação e de sonoridade, como para aperfeiçoar o mecanismo com o objetivo de tornar possível passagens em legato e certas combinações de trinado.25 Segue um resumo das diferenças básicas entre os dois sistemas:26

diferenças de mecanismo:

  • as chaves da mão esquerda são posicionadas de formas diferentes (distribuição mais racional no fagote francês);

  • o fagote francês possui menos chaves do que o alemão;

diferenças acústicas:

  • os dois sistemas têm orifícios em posições e com diâmetros distintos, determinando dedilhados diferentes, especialmente nos agudos (os orifícios no sistema alemão têm um diâmetro maior nos graves e menor nos agudos, o contrário do sistema francês);

  • o orifício da campana, quando não acionado, permance aberto no fagote alemão e fechado no francês, o que muda o timbre;

  • a conicidade do tubo do fagote alemão é mais acentuada que a do francês.

Antigamente, o fagote francês era usado em todos os países de língua não alemã. Porém, desde o começo do século XX, muitos países têm gradativamente optado pelo fagote alemão, processo que se iniciou na Inglaterra e chegou até a França.27 Hoje em dia, França, Bélgica, Suíça, Espanha e Canadá usam os dois sistemas paralelamente.

1.3.1 Particularidades do repertório para o fagote francês

Uma parte considerável do repertório para fagote do século XX foi composta na França. A textura das obras franceses difere das demais obras, porque lá se desenvolveu uma escrita própria para os instrumentos de sopro, o que tem a ver com o desenvolvimento musical em geral na França.28

A guerra de 1870/71, perdida contra a Alemanha, levou os franceses a refletirem sobre os valores nacionais e suas formas de expressão. Com isso, concentraram-se na música produzida no país. Desde os clavecinistas do século XVIII não existia mais uma música de câmara nacional e independente dos ídolos clássicos vienenses ou do romantismo alemão. Além disso, como tendência geral, o uso dos instrumentos de sopro restringia-se às preferidas trompa e clarineta. A tradição de orquestração, fundada por Berlioz, com seu conhecimento profundo dos timbres e suas possibilidades de emprego e combinação, expressava-se principalmente na literatura orquestral.

Já na década de 1870 surgiu, em Paris, a Société National de Musique, cujo objetivo era prestar apoio à produção e divulgação de obras de compositores franceses. Os artistas reunidos em volta de César Franck e, depois, de Vincent d’Indy, no ínício do movimento, continuavam a escrever para formações orquestrais grandes, dando prosseguimento ao pensamento romântico, mas no final do século começaram a procurar novos meios de expressão. É nesta linha de interesse que se encaixou a Société des Instruments à Vent, de Claude Paul Taffanel, que motivava os compositores a escreverem para instrumentos de sopro e organizava apresentações deste repertório.

Depois da Primeira Guerra Mundial deu-se a ruptura definitiva com a tradição romântica. Ao invés de obras monumentais, surgiram peças para formações camerísticas, muitas vezes com estruturas simples e orientadas para o pré-classicismo, o que se expressou nos títulos (sarabande, sicilienne, suite etc.). Instrumentos antes esquecidos como a flauta, o oboé e o fagote foram contemplados com um grande número de obras.

A nova geração de compositores estava aberta a todos os tipos de influências, como por exemplo, das tendências vanguardistas ou do background cultural dos estrangeiros residentes em Paris. Por causa dessa diversidade de estímulos musicais é difícil falar em homogeneidade de escolas. Jovens compositores, com estilos próprios, unem-se apenas em torno de aversões, contra Wagner, Beethoven ou os impressionistas.

As peças franceses para fagote compostas neste contexto, ou ao longo do século XX, ocupam um lugar importante no repertório porque exploram bem determinadas possibilidades do instrumento, como o staccato leggiero e o registro agudo. O emprego desses recursos mostra que aquelas obras foram especialmente pensadas para o fagote francês, com o qual sua realização se torna mais fácil do que no sistema alemão. Entre os concertos destacam-se os de J. Françaix, A. Jolivet, M. Bitsch, E. Bozza (conhecido pela literatura para instrumentos de sopro em qualquer formação), C. Koechlin e H. Tomasi. Para fagote e piano há obras interessantes de G. Pierné (já de 1898), C. Saint-Saens, A. Tansman, H. Dutilleux, E. Bozza, M. Dubois e R. Boutry. Também nas obras orquestrais dos impressionistas (Ravel, Concerto para piano; Debussy, La mer) foram valorizadas a sonoridade e as particularidades técnicas do sistema francês.

1.3.2 Particularidades referentes ao uso do fagote e à escrita para o instrumento no Brasil

Como o Brasil se orientava principalmente pelas culturas francesa e italiana, o sistema de fagote normalmente usado até a Segunda Guerra Mundial era o francês, quadro que começou a ser invertido depois da Guerra. O Instituto Goethe então facilitava a importação de instrumentos alemães, o que aumentou significativamente o número de fagotes alemães à disposição dos músicos.

No início dos anos 50, Eleazar de Carvalho, seguindo a tradição de seu mestre Sergei Koussevitsky, preferiu trabalhar com madeiras francesas, razão pela qual convidou músicos franceses - entre eles os fagotistas Noël Devos e Alain Lacour - para integrar orquestras brasileiras. Alain Lacour entrou para a Orquestra do Estado de São Paulo no cargo de fagote solista e teve diversos alunos. Noël Devos, além de ocupar a mesma função na Orquestra Sinfônica Brasileira, teve e tem importantíssima atuação como solista, camerista, professor de fagote e música de câmara, em aulas particulares, na Escola de Música Villa-Lobos no Rio de Janeiro, na Escola de Música da UFRJ (até 1997) e em cursos de férias realizados em diversos estados brasileiros. Pela importância que teve e pela presença que marcou nos palcos e nas salas de aula, o fagote francês continou sendo divulgado por todo o país.29

Hoje, no Brasil, predomina o uso do fagote alemão, mas a convivência dos dois instrumentos continua e chega a tal ponto que, numa só orquestra ou num só grupo de câmara, os fagotes francês e alemão tocam lado a lado.30

Como no Brasil os dois tipos de instrumento são usados paralelamente, foi natural pensar na hipótese de que as obras compostas por autores brasileiros pudessem privilegiar um dos dois sistemas: o alemão ou o francês. A hipótese não se confirmou. Em nossa pesquisa feita por carta ou e-mail, perguntamos ao compositor se, ao escrever para o instrumento, ele teria pensado num sistema específico de fagote. Nas respostas, somente dois responderam afirmativamente à nossa pergunta. Foi interessante perceber que, mesmo os compositores que dedicaram a peça a um determinado fagotista (com seu instrumento), não necessariamente mostraram preferência por um dos dois sistemas. A escolha de um intérprete não implicou na escolha de um dos modelos do instrumento.

Entre as 36 obras reunidas, encontramos cinco que teriam uma execução menos complicada e, com isso, provavelmente mais favorável no fagote francês pelo simples fato de que o compositor fez bastante uso do registro super-agudo do instrumento. É o caso dos dois estudos de José Siqueira (Estudo para fagote solo e Estudo de Virtuosidade), de algumas das 16 Valsas para Fagote de Franscisco Mignone, dos Tre esercizi de Didier Guigue, que contém dedilhados franceses para a produção de multifônicos, e de Combinações de Eduardo Seincman, que exige, em agitato, a execução no limite da extensão da região aguda de quiálteras de cinco semicolcheias em staccato.

23 A. Buffet foi um dos fabricantes que mais aperfeiçoou o instrumento francês.

24 GROVE, vol. 2, p. 267.

25 MGG, verbete ‘Fagott’, coluna 283.

26 Este resumo baseia-se no capítulo”Fagotes tipo Buffet e Heckel” da dissertação de mestrado de ZEN, Marcio. Os Fagotes Buffet e Heckel: Um estudo comparativo. Rio de Janeiro: Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro 1996, p. 37-57.

27 ZEN, p. 58-60.

28 As seguintes informações baseiam-se no encarte do CD Musique pour Bassoon e piano (Dag Jensen, basson e Midori Kitagawa, piano), texto de introdução, sem contagem de páginas. MDG 603 0585-2, Detmold (Alemanha), 1994.

29 As informações deste parágrafo foram obtidas com Noël Devos. DEVOS, Noël. Comunicação pessoal. 29 de maio de 1999. Podem ser encontradas também em ZEN, p. 60/61.

30 Segundo Noël Devos, F. Mignone defendia a atuação simultânea dos dois modelos, pedindo aos fagotistas que não procurassem assimilar os timbres. DEVOS, Noël. Comunicação pessoal. 29 de maio de 1999.

 

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