CORREIO BRAZILIENSE, 1º de março de 2006

 

MÚSICA
A singeleza de um baixo soprado


Nahima Maciel
Da equipe do Correio

 
Adauto Cruz/CB
O fagotista e lutier Hary Schweizer lança o primeiro (e último, segundo ele) CD do instrumento
 
O som grave de baixo do fagote fisgou Hary Schweizer aos 27 anos. Idade tardia para dar início ao estudo de um instrumento, ele reconhece. Mas como a paixão traça lá seus caminhos, o catarinense radicado em Brasília há quase quatro décadas cedeu e foi estudar fagote. Deixou para trás o piano e investiu no sopro. Estudou na Alemanha, terra natal de seus pais, e voltou ao Brasil no final da década de 1970. Há 16 anos, tempos depois de participar da fundação da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro e já professor do Departamento de Música da Universidade de Brasília (UnB), Hary vislumbrou novas trilhas. Inconformado com os preços do instrumento no Brasil, resolveu montar sua própria oficina de fabricação de fagote. Foram necessários 10 anos de estudos, pesquisas e tentativas para chegar a um instrumento cuja sonoridade fosse satisfatória.

É esse mesmo resumo biográfico estampado nas linhas acima que o fagotista tentou contar nas 21 faixas do CD Com licença!…. Eclético nos gêneros e na origem dos compositores, o disco é o primeiro de Hary. “E o último”, avisa. As dificuldades que rondam a produção de discos independentes não motivam o instrumentista a seguir adiante. Mas resultam em trabalho de singular delicadeza e coesão. “É um disco para ouvir como se folheia um álbum de fotografias. É um pequeno retrato autobiográfico. Não é virtuoso porque não sou um virtuoso”, avisa o fagotista. Pode não haver virtuosismo algum, mas certamente estão ali 50 minutos de melodias contemporâneas carinhosamente lapidadas, sem excessos e nada enfadonhas.

Para começar, Com licença!… foi inteiramente gravado com fagotes construídos por Hary. Quebra uma possível – ainda que remota – monotonia do instrumento solo a participação da pianista Elza Gushikem, do baterista Paulo Marques e dos também fagotistas Gustavo Koberstein e Flávio Lopes Figueiredo Júnior. O quinteto, completado por Hary, está presente em grande parte das faixas, ora na formação integral, ora desmembrado. Abre o disco a faixa-título Com licença!…, composição do maestro Júlio Medaglia, um presente para Hary. “Foi escrita especialmente para o CD e é a única faixa que congrega todos os músicos envolvidos”, conta. A faixa seguinte, Ária, um trecho da Bachianas brasileiras nº 5, de Villa-Lobos, é talvez a mais conhecida do disco. Gravada inúmeras vezes com os mais diversos arranjos, a cantilena tem trecho escrito originalmente para voz. É onde se encaixa o sopro do fagote, acompanhado unicamente pelo piano. O efeito é simples e contribui para ressaltar a melancolia contida na Ária.

Na seqüência, uma pequena jóia: Lua branca, a parte melódica e singela do conjunto Duas miniaturas brasileiras, de Chiquinha Gonzaga. Novamente o fagote assume o lirismo do canto que originalmente acompanha os instrumentos. Entremeados ao popular e ao erudito brasileiro estão três composições de Achim von Lorne, professor de Hary durante os anos de estudo na Alemanha. As peças são inéditas e foram escritas para o próprio instrumentista em forma de estudos. Dois tangos de Emílio Terraza e uma modinha de Francisco Mignone completam o repertório, que tem ainda Brejeiro, de Ernesto Nazareth, e três curiosidades.

Jobim
É um mistério o interesse de Tom Jobim pelo fagote, mas é fato que o instrumento atraiu sua atenção. Mágoas de fagote é uma pecinha curta, não passa de dois minutos, na verdade o rascunho de uma composição inacabada, segundo Hary. Em Com licença!… ganhou a primeira gravação. Os ares de marchinha têm acompanhamento da bateria, discreta mas ritmada por trás do fagote. Mais adiante, O fagote encontra o jazz, do alemão Andreas Herkenrath, anuncia o pendor jazzístico de Hary. O fagotista toma a liberdade de transpor o colorido jazzístico para a Sonata em mi menor de Benedetto Marcello, compositor italiano do século 18. “Todas essas peças foram escolhidas em cima da minha história de vida: eu aprendendo, ensinando e construindo. E no final senti vontade de encontrar o jazz”, explica.

O lançamento de Com licença!…, marcado para abril, será acompanhado de um curta-metragem de Dora Galesso sobre a atividade de Hary como lutier. O pequeno documentário mostra os passos da fabricação do instrumento. O processo é inteiramente artesanal e demorado. Hary leva em média um ano para construir dois fagotes. E se envolve desde a colheita da madeira até o polimento das chaves laterais do instrumento, hoje distribuído para todo o Brasil.


Evolução do instrumento

O fagote é instrumento que não pode faltar em uma orquestra. É dele a função de baixo contínuo na formação sinfônica. Nos conjuntos de sopro também é instrumento imprescindível. O fagote começou a ganhar destaque na música barroca graças aos experimentos do italiano Antonio Vivaldi, no século 17. Nessa época, tinha atuação mais limitada na orquestra. Sua função era exclusivamente a do baixo, sem voz principal. Vivaldi investiu em composições que tiravam o instrumento do segundo plano. E Mozart acentuou o destaque, ao escrever um concerto para fagote e orquestra e dezenas de octetos e quintetos, já no século 18. Grande parte do repertório é orquestral, mas há boa literatura em que ele aparece para travar melodias solos. “Uma vida inteira não daria para tocar tudo”, garante Hary Schweizer. O instrumento é formado por um longo tubo de madeira, com 18 chaves e oito orifícios laterais que controlam os tons e constroem as notas.
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COM LICENÇA!…
Primeiro CD do fagotista Hary Schweizer. Com Elza Gushikem (piano), Paulo Marques (bateria), Gustavo Koberstein (fagote) e Flávio Lopes Figueiredo Júnior (fagote). 21 faixas. R$ 25. Pode ser adquirido pelo site  www.haryschweizer.com.br   ****

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