FRANCISCO MIGNONE
  16 VALSAS PARA FAGOTE SOLO

MEC/FUNARTE

 

UM DISCURSO SOBRE EDIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DAS "16 VALSAS PARA FAGOTE SOLO DE FRANCISCO MIGNONE"

Elione Alves de Medeiros

Uma partitura musical pode ter mais ou menos do que aquilo que aparece na página;

 mas tem sempre alguma coisa não aparente na página.

Richard Strauss

Resumo
O objetivo deste trabalho é buscar reflexões sobre as inquietações que emergiram da Dissertação de Mestrado do mesmo autor (1995), que tem como título "As 16 Valsas para fagote solo de Francisco Mignone, uma abordagem técnica e interpretativa".
O trabalho versa sobre a supressão de traços interpretativos e rítmicos, identificados na publicação da Funarte, que foi editada a partir do autógrafo do compositor Francisco Mignone. Buscou-se discutir os valores de uma edição que considerasse mais a atmosfera musical do compositor. Entendendo-se que dessa forma, o executante teria mais dados que possibilitassem uma interpretação mais próxima às idéias musicais do autor, e por isso, trazer a sugestão de uma nova edição dessa obra brasileira, que se tornou internacionalmente importante para a literatura do fagote.

 

Francisco Mignone e as Valsas para fagote solo
Quando jovem Mignone usava o pseudônimo de Chico Bororó para escrever peças populares e seresteiras, pois havia discriminação sobre essas composições por parte dos eruditos daquela época (Ikeda; 1986). As valsas compostas por Francisco Mignone trazem fortes características desses traços seresteiros dos tempos em que ele próprio participava de grupos musicais do gênero nas esquinas de alguma rua da cidade de São Paulo, executando com sua flauta, chorinhos e valsas. (Kiefer, 1983).

As Valsas para fagote solo surgiram a pedidos da professora Irany Leme, que havia programado a série “Em  Tempo de Valsa” (1979), com seis recitais específicos do gênero Valsa. O fagotista e professor Noël Devos[1] foi convidado entre outros intérpretes a participar do recital. Contudo, Devos transmitiu suas dificuldades nessa participação, pois não havia encontrado na literatura internacional para fagote, nada do gênero. Imediatamente, a pianista Irany Leme foi até Francisco Mignone e fez um apelo ―  Mignone tinha composições de valsas para piano programadas para esse evento ― e ele se dispôs a escrever algumas valsas para fagote solo, assim possibilitando a presença do fagotista nesse recital (Leme, declaração pessoal, 1994). Dessa forma surgiram as valsas: “Valsa-choro” e “Macunaíma”, essa, em homenagem a Mário de Andrade, seu principal amigo e incentivador (Mignone, 1991). Estimulado por Devos e pelas valsas para fagote executadas, o compositor iniciou mais um ciclo de composições, escrevendo então as “16 Valsas para fagote solo”.

[1] Noël Devos (1929): fagotista de origem francesa e naturalizado brasileiro, chegou ao Rio de Janeiro na década de 50 para ser o primeiro fagote solo da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB). Foi professor da Universidade Federal do Rio de Janeiros ( UFRJ), aposentado,  leciona na Escola de Música Villa-Lobos. Noël Devos com sua grande musicalidade e técnica incentivou grandes compositores nacionais a escreverem obras para o fagote. Entre eles podemos citar: Mignone, Guerra-Peixe, Nelson de Macedo, Alceo Bochino, Osvaldo Lacerda, entre outros.

Ponderando sobre a edição Funarte das “16 Valsas para fagote solo de Francisco Mignone”
Observando-se o autógrafo das “16 Valsas para fagote solo de Francisco Mignone”, que se encontra na Seção de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, percebe-se claramente a existência de supressão de dados relevantes, em relação à edição da Funarte de 1983, que serviu de comparação. Logo, resolveu-se fazer uma análise comparativa dos dois documentos, ou seja, o autógrafo e a edição publicada da Funarte, que foi realizada a partir desse autógrafo. Esse material está devidamente catalogado e à disposição do pesquisador (Higino, declaração pessoal, 2005).
Numa minuciosa pesquisa comparativa usando-se os dois documentos citados, pôde-se perceber na edição da Funarte a ausência de dados muito importantes, que  sobremaneira, facilitariam uma melhor compreensão interpretativa desse conjunto de composições de valsas para fagote solo. O primeiro aspecto digno de nota é a supressão de todas as indicações em francês que o compositor fez referência no autógrafo, e que na edição da Funarte foi totalmente abolida, mesmo em português. Essas notações dizem respeito aos pontos de vista interpretativos. Elas foram escritas em francês porque as valsas foram compostas para o  fagotista e professor, Noel Devos, que é de origem francesa.
Foi possível encontrar diversas anotações desse tipo, como por exemplo: Na “Sexta Valsa Brasileira" comp. 64: Très agile comme une Flûte ou na Valsa “A boa páscoa para você Devos!” no compasso 34 temos fretenez . No comp. 40 da Valsa “A escrava que não era Isaura”, temos: élargissant em peu. Essas notações orgânicas e evocativas, que tratam da flexibilidade na execução de determinados trechos musicais, são vitais para um bom entendimento do semblante da obra a ser interpretada e da idéia musical do autor. As valsas para fagote solo de Francisco Mignone estão na sua maioria com essas indicações em francês no autógrafo. Aqui, foram colocados apenas alguns exemplos, porque se apresentaria muito extenso a exemplificação de todos os termos em francês.
Apenas para ilustração ver os exemplos das figuras 1, 2, e 3).
Fig. 1 compasso 64 da “Sexta Valsa brasileira”.
Fig. 2 compasso 34 da “Boa Páscoa para você Devos!”.
Fig. 3 compasso 40 da “Escrava que não era Isaura”.

 

Pela entrevista pessoal buscou-se saber quais as razões dessa ausência de dados na edição da Funarte, assim, em comunicação pessoal com o professor Noël Devos (2005), Devos declarou que Mignone teve em mãos a boneca[2] da edição. Examinando-a notou as ausências das indicações em francês e logo se mostrou insatisfeito. Os responsáveis pela edição das valsas para fagote solo pela Funarte, mantiveram o que estava impresso no projeto gráfico e prometeram mudanças na segunda edição. Fato não acontecido. As razões foram buscadas, mas sem sucesso, haja vista a dificuldade de identificar hoje os funcionários da Funarte responsáveis pela edição de 1983 das referidas valsas.

[2] Boneca: Projeto gráfico de jornal, revista, livro ou qualquer outro trabalho gráfico de mais de duas páginas destinado a ser impresso; Dicionário Michaelis em Português.

O mais preocupante é que outras edições desse conjunto de obras estão sendo publicadas, mantendo como base a edição da Funarte. Têm-se como exemplo uma edição da BME (Brasilian Music Interprise, que foi encomendada para o concurso Gillet [3] patrocinado pela (International Double Reed Society) em 1998. Isso tem acontecido pelo fato da importância desse conjunto de composições. Essas obras têm sido executadas e gravadas na Europa e EUA, tem sido peça de confronto em concursos para jovens solistas e para vagas de fagote nas orquestras, além disso, são aplicadas em classes avançadas de estudantes de fagote no Brasil e no exterior. Apesar das belas performances assistidas ao vivo e ouvidas por intermédio de CD de áudio, permanece a inquietação de que se as edições respeitassem as idéias musicais do autor, quantos dados adicionais poderiam enriquecer a interpretação dessas obras. Nota-se em algumas gravações a presença da tradição oral, esta extraída da primeira gravação feita pelo fagotista Noël Devos, que teve a possibilidade de obter as idéias musicais do compositor nessa obra

[3] Concurso Gillet : in memorian ao oboista francês e membro honorário da I.D.R.S, Ferdinand Gillet.

Além dessas notações ausentes na edição Funarte, em relação ao autografo, a edição da Funarte apresenta ainda outros pontos que trazem dúvidas, cuja causa poderia ter sido provocada por questões técnicas de impressão da máquina, fonte, tipologia, ou ainda, pela inobservância dos editores
A maioria das figuras que simbolizam as apoggiaturi  encontra-se deslocada, isto é, em vez de localizada antes da barra de compasso ligada imediatamente a nota do compasso seguinte, como se apresenta no autógrafo, a apoggiatura  encontra-se no primeiro tempo do compasso seguinte, imediatamente ligada a outra figura ou nota. Esse fato contribui sem a menor dúvida para uma execução onde se permuta o tempo fraco para o tempo forte, isto pode não transmitir da melhor forma as intenções musicais do compositor, pois ao executar essas figuras de ornamento, o intérprete vai colocar mais ênfase ou importância no tempo forte. Quando se define esses dados pela escrita, o intérprete pode ter mais liberdade de escolha. Podem-se observar no autógrafo do compositor algumas apoggiaturi iniciando-se no tempo forte e outras na sua maioria no tempo fraco. Na edição da Funarte esses traços têm um comportamento padrão, ou seja, todas, sem exceção, iniciam-se no tempo forte do compasso, esvaziando assim, um pouco das possibilidades de nuances interpretativas para o intérprete.
Para melhor compreensão do texto inserimos aqui alguns exemplos esclarecedores.
Observe as figuras 4 e 5 a seguir:
Fig. 4 os 5 compassos iniciais da Valsa “Dolorosa” Na edição Funarte.
Fig. 5 os 5 compassos inicias da Valsa “Dolorosa” no Autógrafo
É necessário frisar, que essas observações são comuns, e encontradas em grande parte das “Valsas para fagote solo de Francisco Mignone” da Edição Funarte. Outras pequenas propriedades observadas no autógrafo, e diferentes na Edição Funarte dizem respeito às figuras rítmicas. Pode-se observar no compasso 73 da Valsa solo para fagote "Mistério", que apesar de Mignone em seu manuscrito não deixar claro uma ligadura entre as 7 colcheias que preenchem o compasso, ele deixou bem visível o número sete acima do compasso entre as notas e a ligadura. O compasso apresenta 4 colcheias e 3 colcheias em forma de quiáltera. Para chegar a essa conclusão rítmica, foi levado  em consideração algumas informações sobre o compositor, por intermédio de seu principal intérprete e alvo de suas composições para fagote, ( Devos, 2005). O movimento melódico que se dá nesse compasso pertence a uma cadência, e lembra muito as improvisações do violão seresteiro, quando acompanha um choro ou uma música do gênero, que se caracteriza entre outras coisas pelo sentimento e pela agógica[4]. Ver como exemplos, as figuras 6 e 7. É mister ressaltar, que foi dada à importância do fato em si, e não no contexto da obra, por isso mesmo, os exemplos aparecem somente naquele ponto pertinente.

[4] Agógica” às vezes é usado para designar qualquer tipo de desvio em relação ao rigor rítmico Dic. Grove de Música; Edição concisa; p.12

Fig. 6 compasso 73 como se apresenta na Ed. Funarte.

Fig. 7 compasso 73 como se apresenta no autógrafo
Uma edição que busca valorizar a idéia sonora do compositor, guardando todos os traços possíveis do autógrafo, naturalmente enriquece a interpretação.  Um primeiro julgamento sobre a edição da Funarte das “16 Valsas para fagote solo” sugeriu que se trata de uma  Edição Prática, onde em vez de trazer consigo a intenção sonora do compositor, traz a do editor como nos informa Figueiredo:

A Edição Prática, também chamada didática, é destinada exclusivamente a executantes, sendo baseada em uma única fonte (...) com a utilização de critérios ecléticos para atingir seu texto. Um dos problemas comuns com tal tipo de edição é a manutenção de uma série de erros, já que os editores têm a tendência de usar edições anteriores para seu trabalho de revisão (Figueiredo, 2004)

Embora o documento usado pela Funarte tenha sido o autógrafo, as evidências levam a crer numa edição sem maiores compromissos com a visão musical do autor nessas peças. No prefácio da Edição Funarte das “16 Valsas para fagote solo de Francisco Mignone” têm pequenos textos com sugestões interpretativas escritas pelo professor Noël Devos, para a execução dessas valsas, ele termina seu texto assim: “Este esforço de divulgação didática da Funarte terá certamente boa aceitação e repercussão junto aos músicos e melômanos” (Devos; 1982). Isso reforça nosso julgamento de que se trata de uma Edição Prática. Assim, fica aqui nossa sugestão de uma nova edição, a partir do autógrafo, que seja mais completa no que tange a idéia musical de Mignone, aumentando as possibilidades de compreensão da atmosfera musical do compositor, dessa forma contribuindo para o entendimento interpretativo. Assim, sugere-se uma edição crítica da obra,  que assim constará de todas as informações que o autor inseriu no autógrafo além de outras fontes pertinentes, incluindo a tradição oral (Feder, 1992).

 

LISTA DE REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira, 2° ed. São Paulo: Martins, Brasília: INL, 1975. 247 p.
AZEVEDO, Luis Heitor Correa de. 150 anos de música no Brasil (1800-1950), Rio de Janeiro: José Olympio, 1956
bibliogrAFIA  CONSULTADA
FEDER, Georg. Filologia Musicale: Introduzione alla critica del testo, all’ermeneutica e alle tecniche d’edizione. Traduzione di Giovanni di Stefano. Revisione: Lorenzo Bianconi. Bologna: Società Editrice Il Molino, 1992.
DEVOS, Noël. Comunicação pessoal, 25 fev. 2005
Figueiredo, Carlos Alberto. Tipos de Edição in: Debates, caderno de Pós Graduação em Música; 7; 2004;Centro de Letras e Artes, Uni-Rio, Rio de Janeiro, p. 39 – 55
Grier, James. The critical editing of music: history, method and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
DICIONÁRIO  Grove de  Música: dição Concisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1994
HIGINO, Elizete.Comunicação pessoal, 8, mar. 2005
IKEDA, Alberto. Chico Bororó: um erudito na música popular in: O Estado de São Paulo, São Paulo, 9 de março de 1986, p. 5
Kiefer, Bruno. Mignone - vida e obra. Porto Alegre: Movimento, 1983
LEME, Irany. Comunicação pessoal, 8, agosto, 1994.
________ . Em tempo de valsa, Rio de Janeiro, 1979, Uni-Rio/Funarte
MEDEIROS, Elione. Uma abordagem técnica e interpretativa das 16 Valsas para fagote solo de Francisco Mignone, Dissertação de Mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 1995.
MIGNONE, Francisco. 16 Valsas para fagote solo, Rio de Janeiro, Funarte/INM/Pró-Memus, 1983, 35 p.
________. Depoimentos; Rio de Janeiro, Museu da Imagem e do Som, mar. 1991.
Elione Medeiros foi aluno dos professores e fagotistas, Mario Câncio, Hary Schweizer e Noël Devos. É Mestre em fagote pela UFRJ. É professor de fagote e Música de Câmera da UniRio. Dirige os cargos de fagote solo na OSTM Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, e OPS Orquestra Petrobrás Sinfônica. É Presidente da Comissão Artística da OPS. Tem se apresentado como solista e camerista. Teve três artigos publicados pela revista “Eldorado” da Associación Latino-americana de Instrumentistas  de Cañas -  Buenos Aires

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